sexta-feira, 2 de julho de 2010

Fernando, o estagiário

Por incrível que pareça, essa história é verdadeira

Fernando acordou cedo aquele dia. Tinha uma entrevista marcada para as 9h e não se atrasaria. Não mesmo, pois a bolsa auxílio que ofereciam era quase o dobro do que costumavam pagar aos estagiários da área de design. Isso não quer dizer muita coisa realmente, mas que motivou o garoto, ah, isso motivou. Ele era um jovem garoto de recém-completados 18 anos. Não tinha muita experiência na vida nem pessoalmente, quanto mais profissionalmente. Mas a chance de ganhar aquele salário aparentemente generoso - ainda que desprovido de qualquer outro tipo de benefício existente - despertou vontade de vencer em Fernando.

Assim ele saiu de casa por volta das 7h30 e pegou o ônibus com destino ao parque do Ibirapuera. A sensação de poder trabalhar perto daquele verde também ajudava a impulsionar o jovem designer. Não é qualquer um que tem a honra de trabalhar num dos maiores pontos com natureza de São Paulo. Quanto mais um estagiário... Será que descontariam algum valor da bolsa auxílio por esse pequeno luxo? Fernando esperava que não.

Depois de meia hora, chegou à uma pracinha que tinha como referência para o endereço da empresa. Resolveu checar se estava tudo ok: camisa pra dentro, cabelo penteado, hálito bom e, claro, celular desligado. Fernando ouvira histórias terríveis à respeito de toques de celular durante a entrevista. Histórias envolvendo meninas que saíam da sala chorando e entrevistadores com risadas malígnas. E Fernando não queria passar por nada disso. Estava, pelo visto, tudo certo para o grande momento.

Caminhou um ou dois quarteirões até a empresa. Pela fachada era uma empresa grande. Pelos carros estacionados, capital era o que não faltava. Talvez por isso mesmo é que tenham tomado tão amável ato de pagar alguns trocados à mais para um estagiário. Fernando se animou ainda mais. Chegara a hora!
Tudo pronto, porém o primeiro teste apareceu. Onde estava a maldita campainha? Como uma empresa de aparência tão saudável não tinha uma campainha instalada? Fernando ficou sem jeito e procurou em volta. Olhou para as paredes da empresa e, sem graça, fez o que qualquer um também teria feito: bateu palmas.

Depois do silêncio tenebroso que seguem as batidas de palmas à frente de um estabelecimento, a porta exageradamente larga se abriu. Uma moça loira e simpática abriu e convidou-o a entrar.
Fernando sentou na recepção ao lado de um outro jovem que lembrava muito um designer também inexperiente. "Aqui está a concorrência então", pensou. Logo viu que a concorrência era acirrada, pois chegaram mais quatro designer jovens e sem-jeito, como ele. Um ou dois trocavam umas palavras. Fernando não era muito de fazer amizade em filas ou salas de espera e por isso ficou quieto.
De uma porta afastada e maior ainda que a da entrada, saiu um sujeito moreno engomadinho, porém de rosto amigável. Chamou os seis rapazes para entrar. Todos de uma vez, como Fernando reparou. Sentaram-se em volta da mesa. O sujeito, que chamava-se Hernandez, apresentou um pouco de si próprio e da empresa à quem um deles teria a imensa honra em trabalhar. Sobre a empresa não há muito o que reproduzir, pois o Hernandez a descreveu de um jeito complicado e que faz qualquer um preferir prestar atenção na velocidade com a qual saía água do filtro quando alguém ia lá e tirava um pouco.
Após muitos minutos torturantes para entender a logística e a importância da empresa em questão, Hernandez decidiu entrevistar os candidatos. Todos na mesma sala, é claro. Não há tempo disponível para entrevistas individuais para estagiários, mas Fernando estava acostumado com isso.

Cada um falou um pouco de si. Fernando foi classificando-os mentalmente: "o experiente", "o rico-que-não-precisa-trabalhar", "o sabe-tudo-que-provavelmente-vai-pegar-a-vaga", "o pior-que-eu", "o tímidão". Na vez de Fernando, Hernandez pareceu gostar de uma experiência anterior com jornais. Isso não era muito do que Fernando se orgulhava, mas se serviu pra entrevista, então valeu a pena, pensou.
Após a conversa toda, Hernandez decidiu que era hora de aplicar uma pequena prova. A vaga era para Webdesigner então nada mais justo do que os candidatos provarem seus conhecimentos técncicos. Hernandez trouxe uma folha pra cada, com 10 questões e o verso livre "para o caso de precisarem de espaço", como ele mesmo disse. Fernando não gostou dessa última observação, mas não quis perder a calma. Esperou tranquilamente o papel e pegou uma caneta. Leu a primeira questão: "O que significa FTP?". Fernando deu um meio sorriso. Isso ele já tinha ouvido falar. Era algo envolvendo um "Protocolo", mas precisou dar uma pequena espiada na prova do vizinho Sabe-Tudo para lembrar-se do começo.

Pronto. Uma questão já fora. Faltavam apenas mais 9. A segunda dizia: "O que significa HTTP?". "Mas que porra!", Fernando pensou. "Pra quê saber o significado dessas coisas?". Era uma dúvida justa naquela hora, pois Fernando era um Designer Gráfico e não um Web Designer. Mas esse é um erro comum que as empresas costumam cometer. Nada que uma entrevista não esclareça melhor. Mas já que estava ali, Fernando queria ser contratado. Decidiu pular para a questão 3 que pedia para explicar o significado de um código um tanto extenso e impossível de ser reproduzido de cabeça. Fernando desistiu. Uma rápida olhada por cima das outras questões revelou que as coisas só pioravam a partir dali. Uma das questões envolvia até um código com caracteres alienígenas arcaicos. Tudo estava perdido. Acordar cedo, fazer pensamento posivito e desligar o celular tinham sido todos atos em vão. Nada compensaria um analfabeto em programação Javascript, MySQL e WirgMarx7.2. Enquanto isso os colegas Experiente e Sabe-Tudo estavam já buscando novas folhas em branco para complementar as respostas. Nem a espiadinha resolveria mais. Até o Pior-que-Eu parecia ir melhor no teste...
Fernando entregou a prova em branco. É mais justo falar "em branco", pois uma única questão respondida na posição número 1 era quase como ter preenchido apenas o nome. Hernandez ainda perguntou aos candidatos no final: "E aí, muito fácil?". Fernando não resistiu a mandar um patético: "Bem díficl, para ser sincero".

Os candidatos foram embora naquele clima misto entre tensão e alegria para quem gabaritou o teste e misto entre tensão e desgosto para Fernando, aparentemente o único à entregar a prova com 2% de cobetura de tinta.

Fernando voltou pra casa cabisbaixo. Selecionou em seu MP3 as músicas mais tristes possíveis. Um bom blues saberia tudo o que dizer ao pobre jovem. Que o mundo é cruel e injusto. Que as mulheres são más e que as entrevistas de emprego são experiências dolorosas das quais um homem nunca sai inteiro. Ele decidiu ir embora a pé, ignorando completamente a distância de 6km que o separavam de casa. A idéia era curtir a tristeza e pensar na vida. Qual seria o próximo passo? Fazer uma entrevista em que era preciso dançar balé? "O pior não é nem dançar. É dançar e ser reprovado", pensou Fernando.

À certa altura da caminhada, lembrou de ligar o celular e contar ao pai o fracasso total daquela manhã. Ligou e contou, ao que o pai disse com calma e sabedoria: "Não era pra você, filho". Isso o animou um pouco e ele voltou pra casa mais conformado com as mazelas humanas. Ao chegar em casa, começou a tirar a roupa semi-social com a qual os designers costumam ir às entrevistas quando de repente seu celular tocou:
- Olá Fernando, aqui é o Hernandez, tudo bem?
Fernando respondeu que sim achando tudo aquilo muito estranho e pressupondo que a hora de ouvir a recusa havia chegado cedo demais. Hernandez continou:
- Então Fernando, sobre a entrevista que você fez aqui hoje conosco... Bem, você foi aprovado. Gostaria de saber se pode começar amanhã?

Fernando não entendeu nada, mas aceitou a proposta e trabalhou naquela empresa por um tempo. Depois, só muito tempo depois, ele percebeu que havia finalmente ingressado no fantástico mundo dos estagiários. O mundo onde tudo é ao contrário. O mundo onde o trabalho é árduo, o salário é curto e as provas em branco valem nota máxima.

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