quarta-feira, 14 de julho de 2010

Ubiratam

Texto de Caio Guilherme, originalmente publicado no blog Blues Literário, reproduzido aqui com permissão do autor.

Hoje eu acordei cedo. Um pouco antes do telefone tocar. Não, não é meu telefone que toca. O telefone é de Ubiratam e está tocando às 08h20min. Eu acordei um pouco antes disso, mas devo concordar com Ubiratam, é cedo demais. A pessoa do outro lado da linha, consultora de Rh, não se importa se Ubiratam está ou não dormindo, se ele quiser um emprego terá de acordar e atender sem nenhum embargo na garganta. E é isso que ele faz.

Submisso ele escuta dizeres em tom imperativo. Esteja lá às 10 horas para o cliente te entrevistar. Tome um banho, imprima um currículo e use roupas sociais, vá bem vestido. Nosso herói não possui roupas em sua melhor forma. As velhas camisas, herdadas do pai e do irmão mais velho, estão encardidas, amassadas e puídas, mas Ubiratam toma uma para si e a veste. A calça mal cabe e possui vincos que dariam inveja a Cordilheira dos Andes. Não há tempo de tomar café da manhã ou qualquer outra coisa, ele está redondamente atrasado e terá de torcer para que o ônibus e o trânsito de sua cidade colabore.
Despreocupado vejo Ubiratam correr atrás do ônibus. Não sou eu e nem a mocinha do Rh, que esqueceu de ligar para ele no dia anterior, quem necessita desse emprego. Quem precisa vender 8 horas do seu dia por R$ 400 é ele. Ao subir no ônibus sua camisa manifesta grandiosas e oceânicas manchas de suor. Este secará no contato abusivo e forçado com os outros corpos na lata de sardinha. O resultado, uma camisa mal seca e amarrotada.
10 horas e 15 minutos, Ubiratam chega no escritório do cliente. Um lugar limpo, higiênico e esterilizado. Um bom lugar para trabalhar, uma firma de advogados. Atrasado ele recebe uma bronca da recepcionista. 5 minutos antes a própria mocinha do Rh ligara para reclamar do atraso dele e o ameaçara dizendo que isso não se fazia, que aquilo poderia prejudicar a empresa e ela mesma. Que, ao contrário do tempo dele, o tempo do cliente valia ouro e brilhava com oportunidades. Caso houvesse outra chance, e ela deixou bem claro seu pessimismo quanto a possibilidade do mundo de trabalho se interessar por Ubiratam, ele não deveria mais se atrasar tanto. Entrou pelo corredor que a recepcionista lhe indicou, de forma indiferente, depois da bronca. Nele um punhado de sujeitos, irmãos de Ubiratam, feitos na mesma forma de Ubiratam, vários Ubiratans em versões não tão variadas, esperavam desde às 9 horas e 30 minutos. O atraso, pelo qual fora tão censurado, de nada valia e em nada atrapalhava a rotina importante do cliente, da famosa e grandiosa firma de advocacia, estéril e cujos segundos valem ouro.

Uma porta é aberta. Todos são chamados para entrar. Dinâmica de grupo. Um adesivo é colocado nas costas de Ubiratam e ele tem de fazer perguntas, cujas respostas podem ser somente sim ou não, para tentar descobrir quem ele é. Quando o adesivo em suas costas, colocado por uma senhora do Rh, lhe disser quem ele é, ele devera sê-lo em frente a todos ooutros. Devera imitar a “si mesmo” para, dessa forma, ser avaliado. Um não pode sabotar o outro, são todos concorrentes, mas todos devem trabalhar em equipe para que somente um, o tão sortudo um, consiga a vaga. Desse monte de Ubiratans em competição e colaboração pela vaga, só o mais perfeito deles conseguirá ganhar os R$ 400 mensais e, com sorte, substituir parte de suas camisas amassadas, encardidas e puídas.

Nosso Ubiratam questiona para um dos seus irmãos:

“Eu sou um homem?”

“Não, não é.”

“Uma mulher?”

“Não.”

“Eu não sou gente, então?”

“Não.”

“Como? Não, eu não sou gente ou sim, você não é gente? ”

“Não.”

“Explica melhor. Eu sou ou não sou?”

“Você não é.”

“Sou um objeto?”

“Não, não é.”

“Um animal?”

“Sim, você é um animal.”

“E o que eu como?”

“Não.”

“Como eu não como?”

A senhora do Rh intervém no brilhante interrogatório de Ubiratam:

“Não se esqueça que as resposta só podem ser sim e não. Ao invés de perguntar o que você come, chute o que você come, entendeu?”

Ubiratam demorou alguns segundos para responder que sim. Esse monte de afirmações, negações, sugestões, Ubiratans e ordens, estavam lhe enlouquecendo.

“Eu como batata?”

“Não sei.”

“Eu como carne?”

“Não, acho que não.”

“Frutas?”

“Sim.”

“Qual?”

“Ele não pode te responder isso. Esqueceu?” – Interveio novamente a senhora do Rh. Ubiratam balançou afirmativamente a cabeça e pediu desculpas encabuladas. O oceano de suor, extinto no ônibus, voltava a brotar de seus poros e já causava algumas desagradáveis manchas debaixo dos braços.

Cansado daquela brincadeira estúpida, Ubiratam chutou:

“Eu como bananas?”

“Sim, você come bananas.”

“Eu sou um macaco?”

“Sim, você acertou.”

A senhora do Rh entusiasmadamente aplaudiu nosso Ubiratam. Entre todos os outros, ele foi o primeiro a se descobrir. Ela chamou a atenção de todos e ordenou que Ubiratam desse seqüência no teste.

Envergonhado, o primeiro dentre todos eles, imitou a si mesmo, imitou aquilo que a senhora do RH disse que ele era: um macaco.

Pulos e gritos, coçadas de cabeça. Empenhado, ele se lembrou de todos os desenhos com macacos e os imitou muito bem. Todos, inclusive a senhora do Rh, riram. Ele não gostou daquilo. Passado este teste, foi encaminhado para uma outra sala. Nela perguntas sobre seu mal feito ensino fundamental, suas árduas tarefas anteriores e irrealizáveis sonhos foram feitas. Nessa última pergunta, Ubiratam não conseguiu apresentar respostas claras. Objetivos de vida. Seqüência estranha de palavras. Não sabia que precisava ter sonhos e esperanças para digitar documentos na firma de advogados. Devem ser documentos realmente fantásticos para poderem ser só respondidos por alguém com objetivos e possibilidades. Ubiratam ganhou um sonho nesse dia: ser alguém com sonhos e grandes esperanças. O dia mais feliz de sua vida seria aquele em que poderia sonhar.

A entrevista terminou e Ubiratam foi para casa. Pensou em comprar uma coxinha num bar perto do escritório, mas não tinha dinheiro. A comida naquele bairro era muito cara. Foi para casa e atendeu eu telefone logo que chegou. A mocinha do Rh, aquela da primeira ligação, lhe disse que, como ela previra, Ubiratam não passou. Não soube bem imitar um macaco, um simples macaco. Ubiratam se envergonhou e chorou ao desligar o telefone. Era humilhação demais para viver. Ligou a Tv e passou as próximas horas vendo desenhos e filmes com macacos, iria aprender. Nem jantou naquele dia.

Nunca mais segui um dia de Ubiratam em minha vida. Nem sei qual dos vários e não tão variáveis e anônimos Ubiratans conseguiu a vaga. Só sei, caro Ubiratam, – e esse finzinho digo para você e só para você - que imitar macacos é realmente muito difícil, não se sinta mal. Aposto que, assim como você, muitos daqueles seus concorrentes não conseguiram imitar aquilo que a Senhora do Rh disse que eram. A vida é assim mesmo, cheia de confusão e perguntas estranhas. Os ônibus lotados vão e voltam cheios de trabalhadores, alguns trabalhando e outros lutando por seu lugar ao sol, gritando como macacos em mil e uma entrevistas de empregos, inventando sonhos e esperanças para passar nas entrevistas. Não tenhas dúvidas, meu amigo Ubiratam, uma hora ou outra, sua vez nesses lotados ônibus irá chegar e você terá seu lugar sob o ardente sol do meio dia.

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